sábado, 15 de junho de 2024

A URGÊNCIA DO RETROCESSO

  

   Em tempos normais a questão do aborto dá sempre pano pra manga. Mas, ainda que a discussão ficasse num nível aceitável de polarização, num racha comum de ideias e posicionamento, havia sempre um cenário bizarro no que sempre foi proposto e prontamente combatido sobre a interrupção da gravidez em todos os seus elementos, seus fatores, circunstâncias e consequências.
    Agora, quando a própria sociedade espera que o debate flua dentro da lógica da atual realidade, trazendo as respostas que ela sempre busca de soluções imediatas, eis que surge um representante do atraso, o retrocesso pelas vestes de quem se acha um legislador de fato, mas que emperra todo o processo no momento em que a questão exige austeridade, rigor e comprometimento para que as leis estejam sempre adequadas ao comportamento atual.
    Se uma parte considerável de gravidez indesejada advém de uma forma de violência, que é o estupro, então a questão do aborto precisa estar inserida dentro das pautas que reivindicam penas igualmente extremas contra estupradores conjugados de acompanhamento, assistência e outros suportes dentro do que já é discutido à luz do feminicídio.
     Dentro de um contexto histórico e cultural no Brasil, o aborto sempre foi praticado em todos os estratos sociais. Tem sempre uma clínica clandestina operando o procedimento, além de outros métodos arriscados utilizados para interromper gravidez, que isso não é novidade para ninguém. Se havia preconceito e cancelamento sobre quem praticava o aborto, em nenhum momento se sinalizava com soluções de violência, julgamento sumário e cerceamento de liberdade como estão propondo agora, tentando afrouxar a pena de estupro e ainda equiparar o aborto à homicídio.
    E apesar de todo esse barulho e absurdo em torno da questão, nada vai mudar. Haverá sempre alguém procurando um lugar para interromper sua gestação, seja por não ter se protegido na relação, ou aquela que sofreu o estupro, a mais hedionda prática contra a dignidade humana, que pelo aumento cada vez maior de casos registrados, já deveria movimentar o legislativo para, aí sim, para tornar as penalizações pertinentes mais rigorosas.
    Em vez disso, surge um estúpido fingindo ser legislador, trazendo consigo os desígnios e a moral da igreja para interferir mais uma vez na vida em sociedade, como já fazia a igreja católica antigamente impedindo os métodos anticoncepcionais.
     Definitivamente, não é dentro de conceitos e princípios de quaisquer denominações religiosas que a questão do aborto deve ser discutida. O fundamentalismo das religiões foge da razão e com isso usa a violência como meio de defesa de seus ideais. A história da humanidade está cheia desses absurdos no passado.
    Em meio à urgência do deputado Arthur Lira em ratificar esse maldito projeto, inclusive, algumas alas femininas da Igreja também se levantaram contra o projeto de lei. São mulheres que sofrem no seu dia a dia junto com a fé que professam e certamente vão gritar com a mesma estridência com que pregam seus versículos, engrossando o coro de uma grande batalha contra mais um absurdo.
    Um barulho necessário e urgente para que o Brasil não se torne a filial de nações por ai, cujas leis permitem a violência contra as mulheres como prática cotidiana.
    Não passará.


domingo, 2 de junho de 2024

VITÓRIA DA RAÇA

    

  É sempre gratificante ver um jogo de futebol com todos os elementos que fazem de uma partida em especial um grande espetáculo, como foi esse jogaço da final da Liga dos Campeões, em Wembley, entre o poderoso Real Madri e o Borussia Dortmund.
     Mas diante de tudo que tem acontecido com esse garoto Vini Júnior, não tem jeito, a gente vê a disputa com olhos e sentimentos bem distantes da velha estética do futebol. Ou pelo menos o que já se vislumbra há muito tempo longe da praça do velho esporte bretão, mas que também assenta as arquibancadas, porque o público, ou parte dele é o mesmo, ou seja, o futebol acaba sendo uma extensão da roda girando, da terra em movimento. Então... é o futebol reproduzindo a própria translação do planeta.
     Sem fazer depreciação alguma ao Borussia Dortmund, em diversos lances do Vinícius Júnior suplantando um alemão, foram muitos, eu lembrei de Jesse Owens, atleta negro que nas Olimpíadas de 1936, em Berlim, superou os alemães nas provas de atletismo e deixou o Führer pê da vida na tribuna.
    É claro que o palco do jogo era outro, o time alemão, hoje, completamente miscigenado, o próprio Real Madri com jogadores alemães e tal, enfim, as principais equipes do mundo falando várias línguas, mas, quando via o neguinho iludindo o alemão, eu lembrei de como a historia se desenrola desde sempre e várias vozes, sejam as malditas ou as miseráveis tomando cada vez mais fôlego.
  E esse jogo só não teve as reverências dirigidas ao Vini Júnior em La Liga, mas, certamente, tinha na arquibancada do rival gente se coçando, se contorcendo todo para gritar aquele velho bordão que o Vini Júnior ouve quando entorta o marcador e corre para comemorar e confirmar em gesto que está ali, numa espécie de rito de passagem ou relação de pertencimento, seja lá onde couber a maestria de Vinícius Júnior com sua arte nos pés e a bandeira empunhada, porque o talento de Vini Júnior é o seu próprio ativismo.
    A grandeza do Real Madri já é reconhecida e eternizada, assim como a diversidade do público do futebol que prestigia o futebol cada vez mais globalizado, de clubes com várias nacionalidades, vários idiomas, e ainda assim há uma parcela que se incomoda que seja o Vini Júnior quem torna por hora o futebol mais vistoso, mais belo, como já fizeram no passado outros boleiros de canelas cinzentas.
    Até que surjam outros com o mesmo talento e vozes mais ativas no combate a toda sorte de preconceito, no momento é Vini Júnior quem ganha o jogo, o prestígio e o respeito na raça e pela raça.