No âmbito da atual conjuntura de intolerância que se verifica nos diversos círculos de convivência humana, a complexidade de se firmar um debate profundo ou diálogo sequer como forma de se compreender tamanho destempero às facetas alheias vai tomando a mesma dimensão das outras tragédias humanas, à medida em que essa não aceitação ao outro transita também nos meios, onde os mecanismos disponíveis têm o propósito justamente de neutralizar essas aberrações.
Não é novidade que uma autoridade judiciária tenha dificuldades para decifrar o que pode ou não ser depreciativo. O que é grave é fazer juízo de valor sobre uma realidade, sobre algo já fundamentado, como são a cultura e as religiões afrodescendentes.
Não deixa de ser paradoxal que a razão se sobreponha à fé no momento em que esta também tenha influência na vida das pessoas, independente do conceito e dogmas que cada um abraça, quando o estado de direito ainda hesita em fazer reparações imediatas, ainda mais quando a justiça contribui para desconstruir o que é histórico.
Negar o status da Umbanda e do Candomblé como religiões só reafirma o retrocesso da instituição, apesar do recuo do infeliz magistrado.
O próprio conceito de sincretismo religioso, tão forte em terra brasilis, torna sem efeito qualquer argumentação em prol desse disparate.
Pierre Verger, o maior estudioso da cultura africana, na qual se incluem as manifestações religiosas daquele continente, deu com seus estudos realizados no século passado a maior contribuição para que a sociedade brasileira convivesse harmonicamente com sua diversidade de crenças.
Quando o mundo todo faz menção às três religiões monoteístas do Ocidente, automaticamente se cria uma lacuna enorme nas convenções globais, ao relegar ao ostracismo todos os costumes, todos os registros históricos, que apesar do período nebuloso do colonialismo imposto à África, não se apagaram no auge das grandes navegações dos negreiros.
Hoje, surpreende que os homens das leis, acadêmicos, catedráticos, inseridos na antropologia cultural dos tempos de formação acadêmica não tenham incorporado em seus nobres conceitos a magnitude da miscigenação do povo brasileiro.
No futebol, na música, na dança, não é difícil encontrar elementos da cultura africana que invadiu o Brasil pelo cais do Valongo. A ginga do drible, os cânticos do samba-enredo, o compasso do funk, tudo remonta aos atabaques, tanto das tribos, das lajes e do fundo de quintal. Um ethos já impregnado no Brasil.
Os representantes das outras religiões, que saíram em defesa da Umbanda e do Candomblé, lembraram do mesmo ideal de fé, em que todas estão ungidas.
Sendo assim, é inconcebível que a razão se inaugure assim tão cega e simples, contribuindo para a perpetuação do eurocentrismo.
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