terça-feira, 21 de março de 2023

TEM UM VENTO LÁ FORA

 

    Eu tenho estado muito envolvido com a morte. É natural que pelo tempo que já vivi, um monte de gente que eu vi em plena atividade, gozando a vida, produzindo, procriando, suando a camisa e carregando sua cruz, muitas se foram.
   São amigos, parentes, outras que a gente conhecia de vista, mas que fazia parte do cotidiano, principalmente no ambiente de trabalho, aquele cliente antigo, enfim, estão debandando assim do nada.
    Um vento soprando e arrastando as pessoas do nosso convívio, sem que possamos nos preparar. É uma lei dura, mas é lei, fazer o quê? Uma cláusula pétrea. Não tem como derrubar o conceito de aceitar a morte. Ela vem de forma aleatória. A escolha é feita em outro lugar, sem a interferência de quem vai morrer.
    Num padrão completamente equivocado, segundo nossa lógica, a gente vai criando sem querer aquela fila cronológica das pessoas que poderão partir a qualquer momento, porque estão velhas, doentes, que horror. E eis que vão quem ninguém imaginava.
   A gente até vê uma nova geração chegando. Uma criança que chegou na família, na vizinhança, lá na creche, alguém que se tornou pai, mãe, e uma dessas crianças ainda vai cruzar com você e sorrir, de repente, num novo cotidiano, como parte da renovação, na mesma audiência em que vemos uma plantinha brotando em algum lugar.
   É a lei da compensação que também é dura lex, sede lex. No lugar das que já sorriam sempre e muito. No lugar das outras que poderiam ficar mais um pouco. Vou sentir saudade do café, do abraço, do bom dia, da preferência no balcão, das piadas, das curtidas, dos conselhos. Tem gente que eu nem sabia o nome, mas deixou um vazio, porque a viúva agora passa do outro lado da rua sem alegria alguma no semblante.
   O que vai sobrar da morte é a outra realidade, outro lugar para quem se foi. Talvez até haja por lá, não sei, uma expectativa sobre nós que ficamos por aqui. Uma novidade, uma surpresa, um reencontro, um prêmio, um drinque, uma senha, um código de barras, uma audiência com alguém. É meio trágico, meio cômico ficar especulando se a gente vai mudar de fase ou de plano como dizem.
   A minha expectativa sobre o que a morte reserva não é saber quando cada um vai partir, e sim, até quando ficaremos por aqui. Parece que não, mas é uma perspectiva diferente para quem, assim como eu, não tem pressa de ir embora.


sexta-feira, 17 de março de 2023

O TEMPO DE CADA UM

 

  Está um tempo tão sinistro e absurdamente violento que passou batido de muita gente a fala odiosa e infeliz daquela garota universitária de instituição particular de Baurú, zombando de uma colega de turma, que por já ter mais de 40 anos, não teria a menor chance de sucesso no meio acadêmico.
   Eu confesso que fiquei tentado a discorrer sobre mais uma filial dessa rede de preconceitos que assola a sociedade de uma maneira bem plural nos dias de hoje. Mas, particularmente, eu prefiro me ater à virtude que ao delírio.
    Nos mesmos moldes em que já vemos no dia a dia o escárnio à raça, sexo, religião e condição social, também se junta ao pacote maldito o tal etarismo, sobre o tempo em que cada um escolhe para seus planos e sonhos, como se isso também tivesse um modelo a ser seguido, uma lógica certa para as chances na vida, as oportunidades e sortes condicionadas ao ponteiro do relógio ou ao calendário.
   Talvez essa garota que zomba, que zoa está tão lacrada em sua bolha que não vê aqui fora as pessoas quebrando velhos paradigmas de como e quando se firma os projetos de cada um. Onde está escrito que tem um tempo certo para o sucesso e o fracasso?
   A gente vê toda hora por aí cada vez mais indivíduos que só chegam ao apogeu depois de uma longa caminhada, porque sua jornada teve essa dimensão diferenciada, esse destino, e daí? Para quem começa depois, é quase certo que não estivesse preparado lá atrás; com o vigor necessário para aguentar o rojão; com ânimo suficiente para dar o primeiro passo; com a fé à altura da vitória que cada um pretende para si.
   As pessoas interrompem seus projetos por fraqueza, dúvidas, desânimo, comodismo, mas depois encontram alguém que as encorajam a retomar e prosseguir; alguém que as oferecem o que tem de melhor. E assim as pessoas ascendem ao poder, ao sucesso e à fama pelo impulso do outro, porque nós somos bem assim, movidos pelo amor e pela coragem de quem aposta em nós.
  Até mesmo uma tragédia em família, a perda de alguém importante, uma ferida, uma lacuna qualquer servem de impulso para que não se perca a autoestima, a dignidade.
   Mas tudo isso sem um tempo determinado, um prazo, um tempo hábil. Talvez isso explica porque alguém escreveu seu primeiro livro na velhice; compôs sua primeira música aos sessenta; ou se formou depois de anos de estrada; ou deixou para plantar uma árvore depois de tudo resolvido na vida.
   Não importa o quão diferente é o tempo de cada um. Não interessa pra ninguém que os ponteiros do meu relógio vão girando num outro compasso. Não só o tempo das coisas, mas o tempo das pessoas também é relativo. Nem Einstein ousaria propor uma equação para algo tão subjetivo.
   E assim a gente galga degraus até atingir o nirvana, o apogeu, a apoteose, dentro do prazo de validade de cada um. Afinal de contas, eu tenho meu QR Code e você tem o seu.

segunda-feira, 13 de março de 2023

UMA NOVA ENTIDADE



  Toda vez que surge uma novidade na praça é sempre uma expectativa de um mundo novo surgindo no horizonte. Uma realidade que muitos imaginam estar perfeitamente adequada aos tempos atuais.
  Já estavam há muito tempo ventilando as maravilhas da inteligência artificial e cada vez mais facilidades e as soluções mais importantes com o menor esforço possível. Pelo menos é isso que os desenvolvedores dessa nova ferramenta sugerem.
    A gente já estava tão acostumado a gastar menos energia para realizar tarefas que eu mesmo já considerava o controle remoto como a maior revolução da humanidade.
   E como os homo sapiens já vêm ao longo de sua existência tentando aprimorar cada vez mais sua capacidade cognitiva, depois que o cérebro tomou outra dimensão, eis que agora parece que nem neurônios vai ser preciso gastar, coisa que muita gente já não gostava de fazer mesmo, veio em boa hora essa novidade, é verdade.
   Imagine que agora qualquer um terá alguém para tirar conclusões, fazer reflexões, considerações sobre qualquer situação da vida humana em que se necessite fazer juízo de valor ou tirar proveito, enfim, levar vantagem em alguma coisa. A própria evolução humana tem essa premissa básica. É só buscar lá de trás o quanto as tecnologias estimulam as disputas, o acirramento, essas coisas, sob o manto da competitividade. Eu tenho cá minhas dúvidas se a roda foi mesmo uma grande invenção. Mas isso é um outro assunto que também dá pano pra manga.
   De qualquer forma, eu nem sei que recurso poderei usar dessa nova geringonça. Vai depender da minha demanda, embora ache que dificilmente essa nova entidade venha trazer as respostas que eu procuro. Sou muito crítico para achar que haverá, enfim, soluções para o mundo nessa descoberta.
    A princípio, quando tiver vontade, só vou pedir para tocar o hino do Botafogo, alguns clássicos do U2, do Led Zeppelin, do Vivaldi, as minhas preferidas do Milton Nascimento e da Marina, somente, tá maneiro.
   Mas vamos ficar por aqui esperando a forma como essa entidade vai se comportar, se vai ser sustentável, romântica, humanista ou predadora. Eu digo entidade porque é alguma coisa sem um coração batendo, mas criando um fluxo capaz de mover o mundo e deixar muita gente perdida por aí, vai vendo.
   Que possamos sempre evitar falsas expectativas, ainda mais agora que a inteligência artificial faz parecer aos olhos do mundo o advento de uma nova era. E a gente sabe muito bem que criador e criatura nunca tiveram boas relações. Nunca foi fechamento, sempre foi fachada.
   Mas, fiquemos atentos para saber se essa inteligência é artificial mesmo como estão falando por aí.

quarta-feira, 1 de março de 2023

PARA UM DIA COMEMORAR



    Estive pensando porque não é feriado no dia primeiro de março na cidade maravilhosa. Pois é, quase passa despercebido quando a cidade do Rio de Janeiro faz aniversário. Não por causa do barulho ensurdecedor de uma metrópole efervescente no seu dia a dia.
    Para um povo acostumado a festividades, agora mesmo seria uma ocasião muito especial para se levantar um brinde, tomar uma, dar a volta olímpica, soltar fogos, virar a noite na Lapa, enfim,  não faltariam opções para o carioca festejar o glamour da cidade maravilhosa na virada de mais um ano de sua longa trajetória.
     O que sobra hoje para manter de pé o orgulho de cada habitante por essa cidade é a resistência da população até que alguém consiga transformar o Rio de Janeiro num recanto viável, funcional, aprazível para quem aqui vive.
   Mas vamos combinar também que no meio de todo esse amor e orgulho de sobra falta também a mesma medida de cuidado, zelo, responsabilidade, respeito e dignidade. A gente cansa de cobrar da prefeitura uma política à altura do que representa o Rio para o Brasil e para o mundo, e tudo que é feito por aqui ainda não deixou a cidade do Rio adequada ao status de uma grande metrópole, moderna, eficiente e completamente inserida no plano global em todos os aspectos.
    É bom lembrar que o cidadão tem o direito de exigir, sim, o melhor, mas ele também é responsável por manter tudo no lugar. Quem chega de fora para o Carnaval, Réveillon e outras resenhas, anda pelas ruas e vê indícios, tanto de descaso do poder público quanto de desleixo da própria população. Poucos cuidam da cidade como deveriam.
   Toda essa propaganda institucional que fazem para a imagem da cidade fora do Brasil já não tem mais sentido algum. Nativos e forasteiros já estão cientes dessa fake news. Até as empresas que meteram o pé do Rio tiveram motivos óbvios para riscar a cidade de seus roteiros de empreendimentos.
   Agora, depois de todo esse tempo de fundação, civilização, povoamento e modernidade, o ideal é que estivéssemos agora consagrando nossas conquistas, organização e potencial para funcionar a plenos pulmões. A gente era para estar aprimorando tudo que precisou ser feito lá atrás, atualizando uma coisa aqui e ali, para tudo continuar funcionando de fato, sem interrupções na nossa agenda, sem treta de qualquer natureza.
    Infelizmente falta muito para chegarmos a um patamar aceitável. É preciso mudar a narrativa de como fazer o Rio de Janeiro ser verdadeiramente a nossa cidade. Feito isso, pode-se até instituir um feriado nesse dia de hoje.