Parece que está mudando um pouco esse conceito de chuvas de março no Rio de Janeiro, que é uma chuvarada danada quando assenta a primavera por aqui até os festejos de fim de ano, já reparou?
Geralmente nessa época do ano o chão já rachava de tanto calor e o São Pedro tirando folga, que a primavera deve ser bom pra ele também e os santos que já foram gente não são de ferro, eu imagino.
Passou um filme na cabeça, enquanto a água descia firme pelas ruas, e o pensamento lá pras bandas de Paciência, década de setenta, aquele monte de moleque sem futuro, mas cheios de sonhos que a molecada falava um pro outro como que cada um queria que sua vida fosse.
Um temporal desse era um playground na vida da gente. Se tivesse relâmpago, mamãe cobria o espelho e a gente jogava gude no tapete, porque a gente era muito fominha mesmo. Mas, fora isso, havia um lirismo numa poça d’água, lá fora, que ninguém enferrujava nem pegava gripe e bactéria, por mais que se pulasse com os pés nus, que chinelo atrapalha, solta as tiras e estraga a brincadeira.
Havia sempre uma deformaçãozinha no dedão, na sola do pé, nas canelas cinzentas pelo tempo decorrido de recreação. Do começo da aborrescência até atingir seu grau máximo, eram insígnias que marcavam a maturidade e a resistência pra qualquer moleque que nunca botava galho dentro de qualquer desafio. Podia até apanhar depois, mas no dia seguinte o conceito subia no grupo. Tirou onda, moleque. No final das contas, o dedo esfolado demorava mais tempo pra sumir que a marca do chinelo no rabo quente.
Brincar na lama era um acontecimento. Um momento sublime de consagração da infância. A delícia de chafurdar naquele barro lamacento, o campinho transformado em charco, deslizar no barranco até o calção ficar puído. Pois bem, chegar em casa em desalinho, aos farrapos era obrigação, foi combinado isso com a turma, não podia dar mole, não.
Das cicatrizes que marcam a infância, as minhas não têm um trauma sequer, que me fizessem ressignificar o conceito de um tempo esplendoroso para as outras gerações. Nem a guerra das mamonas deixou trauma em nossas vidas. A nossa selva era diferente, fica difícil explicar como a gente sobrevivia ao perigo iminente. Madeira, arame, barbante, lata, papelão, cola e cuspe. Ficaria muito complicado mesmo explicar a métrica dos brinquedos inventados num tempo em que tudo já vem pronto.
Deixa pra lá. De repente, nem entenderiam como o Merthiolate tirava a alma do corpo com aquela pazinha transparente, nesses tempos em que o bagulho agora vem com cheiro de tutti frutti, vai vendo.
