domingo, 24 de julho de 2022

SEGUINDO O FLUXO

    

   A Linha Vermelha é aquele caminho que é um verdadeiro martírio na vida da gente nesse velho trajeto com destino ao trampo nosso de cada dia. Não tem muita escolha pra fugir do sufoco de manhã cedo. Se ficar por ali o bicho pega; se for pela Avenida Brasil o bicho come. Então, deixa quieto e segue o fluxo.
      Naquele horário nobre da manhã, no mesmo local, a mesma confusão de sempre, todo mundo no encontro marcado de todos os dias. É um teste de paciência a que geral é submetido. Eu acredito até que muita gente se supera, se resolve de outros traumas e crises à medida em que vai resistindo ao inferno de um trânsito caótico de vez em sempre.
      Dá tempo até de pensar na vida enquanto o trânsito não anda. Em meio à profusão de carros tipo que estacionados em plena via expressa, uma galera na maior correria disputa a vez de vender aquele cafezinho amigo, que sempre cai bem numa hora dessa, fora o pão de queijo pra ninguém dirigir em jejum.
     Pois é, a Valéria aí da foto faz parte dessa tropa de gente que aposta naquela confusão matinal de carros, ônibus e motos para fazer renda e pagar conta. Você fica ali com a mão no câmbio, esperando andar e vê aquela tribo de colete verde balançando o pegador de pão e gritando seu slogan.
     Uma faixa do trânsito para completamente enquanto a mulher serve o café, mas em todos esses tempos eu ainda não vi ninguém, o motorista atrás reclamando, com pressa, buzinando, enfim. Essa é a melhor parte de toda aquela confusão. Uma confusão organizada e saudável para quem tem uma visão humana sobre as contradições da vida e do mundo. A tolerância que a gente tanto reivindica em outros cenários conturbados funciona ali, que bom.
     Que maravilha a poesia do olhar sobre o outro, quando num momento de agonia, o cara boladão, tudo parado, mas, o reconhecimento que neguim tá correndo atrás, daí a paciência que se traduz até pelo orgulho de ver a moça faturando, porque, está todo mundo na mesma pista, na mesma conexão, ainda que em circunstâncias distintas, mas valendo sempre pela ausência de conflito, o que dá esperança de um outro horizonte nas próximas gerações, se mais pessoas passarem a ideia de que isso é necessário.
     Quando não tem engarrafamento, quer dizer, uma vez na vida e outra na morte, fica até meio estranho o trânsito assim, todo mundo chegando cedo no trabalho, beleza, mas, e aquela galera, a tropa de colete verde? Um dia sem retenção na Linha Vermelha, como mostra o repórter aéreo pela manhã, é um dia sem o pão para aquela gente. Tem sempre alguém que como a Valéria desce pra pista pra passar no mercado depois, pagar a luz, o gás, o leite das crianças, essas coisas.
      E assim segue o fluxo dos carros, das coisas, das pessoas, da vida como uma lei do mundo, como um ensinamento.

quarta-feira, 13 de julho de 2022

DIPLOMA DE MARGINAL

  

 É compreensível que a imprensa use de formalidade para se referir às pessoas pela função que elas ocupam na sociedade, porque todo mundo tem uma ocupação na vida. Todo mundo tem uma missão para cumprir aqui nesse plano. Um desafio que vem junto com o destino de cada um.
    No caso desse sujeito que se aproveitou da anestesia da paciente para molestá-la, não me parece adequado destacar nas falas da mídia, no falatório das esquinas e nas redes sociais essa segunda função, a de médico, que o infeliz usava para mascarar sua outra profissão, a de marginal.
    Na verdade, ele nem cabe no ofício de médico, que é bem próprio de quem restaura a vida das pessoas, resgatando junto com a saúde a dignidade de quem por um momento está por um fio da desgraça, de uma moléstia. O anestesista mesmo é aquele sujeito indicado, habilitado, estudado para amenizar uma dor passageira, tipo aquela que um paciente sente quando precisa ir ao inferno e voltar.
     No entanto, não parece que esse infeliz estivesse empenhado nessa tarefa, muito pelo contrário, era um monstro, ali, um crápula em ação, um marginal de plantão. Só um bandido mesmo poderia se valer da fragilidade alheia para operar o seu verdadeiro ofício, o de marginal.
    A justiça, tão cheia de melindres, disparando sempre o princípio da misericórdia, a presunção da inocência, do coitadinho, do réu primário, da carteirinha de maluco, essas coisas que também dão sobrevida aos marginais, essa mesma justiça também pode dar vez a gravidade do problema diante de uma nova tendência que se verifica, a petulância do marginal, agora em larga escala.
    É inadmissível que o corporativismo da classe médica tolere e revalide as credenciais desse marginal em seus quadros. É preocupante que ainda se encontre brechas na lei para que esse marginal se livre do cancelamento total ou do que pode ser o mais rigoroso, se é que é possível, como uma resposta rápida à sociedade, porque, o que não faltam são marginais, estupradores com uniforme de todos os tipos batendo ponto por aí.
     Com a divulgação daquelas imagens, a gente logo imagina quantas mulheres foram e são abusadas, agredidas, humilhadas, esculachadas e ninguém descobriu, ninguém ficou sabendo, quando não havia nem tecnologia nem tantas vozes se levantando para denunciar essa corja que se infiltra no meio social com diploma de marginal.

segunda-feira, 11 de julho de 2022

NORMALIZANDO A BARBÁRIE

  

   Eu presenciei uma resenha num bar, onde a rapaziada discutia sobre esse assassinato do guarda municipal pelo policial lá em Foz de Iguaçu, em mais um episódio de intolerância que vai se alastrando por aí.
     Pelo menos nessa reunião todos foram unânimes em condenar a violência, independente de lado, como alguns deles fizeram questão de frisar.
      Esse é o aspecto mais importante de toda essa questão que vai durar mais alguns dias e se estender bem mais além do circuito político e da imprensa.
     Só que dificilmente isso vai frear o ímpeto dessa gente intolerante, porque já houve eventos de ataques nas outras disputas eleitorais do passado, de ambos os lados, diga-se de passagem, e ninguém deu a importância devida, por isso esse extremismo foi ganhando forma e agora faz parte do sufrágio universal no Brasil.
     É bom lembrar também que esses eventos de intolerância não são exclusivos do ambiente político. Vejam a bola rolando nos estádios e a porrada comendo solta nas arquibancadas. E o que falar da profanação religiosa que atenta contra a liberdade de cada um professar a sua fé? E os casos de racismo e homofobia em níveis absurdos? As mulheres sistematicamente agredidas no seu dia a dia e mortas por instinto de ódio e intolerância.
      Nem a justiça traz alguma garantia de reparação e redução nos números dessa grande mazela, pois a atual legislação é muito retrógrada para deliberar sobre isso.
    No momento em que o desrespeito às diferenças começa a ceifar vidas humanas, não há agravante algum nas letras da lei, e todos os casos denunciados e investigados seguirão o curso normal, percorrerão os caminhos já conhecidos.
     A sociedade civil precisa começar a discutir e debater esse problema, para justamente levar para o ambiente legislativo e jurídico mecanismos mais eficazes e rigorosos contra toda sorte de intolerância em todas as suas instâncias.
     Enquanto não houver mudanças nesse sentido, a barbárie vai virando coisa normal.

sexta-feira, 1 de julho de 2022

CONTRASTES

 

   Eu não conheci o Pedro quando ele estava na ativa, produzindo aquelas coisas maravilhosas. Naquele tempo ele já estava aposentado, descansando, aproveitando um ócio que parecia ser saudável para quem já respirava uma sensação de dever cumprido.
    Não demorou muito tempo e ele sofreu um baque terrível com uma dessas doenças que imobilizam as pessoas em seus leitos. A independência que ele tinha, a autonomia, a alegria, o prazer de viver, a experiência de contar histórias, ficou tudo no passado, porque agora o expediente que ele vivia era simplesmente lutar pela vida em meio à agenda de remédios na hora certa e aquela resenha de enfermeiros se revezando dia e noite.
     Das vezes em que estive naquele apartamento a rotina da casa era sempre aquele corre-corre em função daquele homem. Seu quarto era como uma enfermaria, mas o resto da casa era normal, todos os cômodos com a mesma configuração de um ambiente residencial. A única coisa diferente agora era a atmosfera do lugar, mas deve ter sido um lar com crianças correndo pela casa; gente discutindo, brigando, comemorando, festejando, falando alto, almoço de família, essas coisas.
     A efervescência de um lar feliz em tempos de outrora deu lugar a um ambiente triste, onde nem música tocava. A televisão só passava a missa, os cânticos, a homilia, tudo para que a vida se reacendesse novamente naquela casa. É como se os anjos estivessem de prontidão por ali constantemente para anunciar, de uma hora para a outra, um recomeço, uma mudança de rumo ou de ares.
     Mas o destino quis assim, que nada fosse mais como antes. Só sobraram vestígios de como era a rotina da casa. Marcas de um tempo bom. Nas paredes da sala quadros de vários tamanhos, pinturas de temas diversos, óleo sobre tela, todos com a assinatura do Pedro, assim como as peças de porcelana espalhadas pela casa e caprichosamente decoradas com a arte e o talento do dono da casa.
     Um acervo maravilhoso que revela o contraste de nossas vidas. Há contrastes nas heranças e legados que ficam de nós. Assim como o Pedro, cada um de nós vai deixar a tristeza de quando partirmos junto com o fascínio de nossas obras e ações. Seja uma virtude ou uma arte qualquer, haverá sempre um contraste entre a dor e o encanto, tipo o contraste entre sombra e luz.