Já faz muito tempo, mas a imagem e a lembrança são bem nítidas até hoje.
Ela estava arrumando cada uma daquelas sacolas de supermercados, que naquela época eram de papel, e foi dobrando uma por uma, cuidadosamente. Havia um cuidado especial para não romper a alça, senão estragava a sacola, perdendo a serventia, pois a sacola era reaproveitada, mais como bolsa que como saco de lixo, como são transformadas as sacolas plásticas hoje.
As pessoas usavam as bolsas de papel de supermercado como se usam mochilas hoje. Pareciam bolsas de grife das Casas da Banha.
Naquele dia, ela resolveu dar uma arrumada geral naquele monte de bolsas enfurnadas num canto qualquer da casa. Ela abria novamente as bolsas para dobrar direito e ficar mais arrumadinho. E usava a própria bolsa para acondicionar as demais. Cabia bastante dentro de uma. Deu para encher duas bolsas, ficaram bem cheias.
Quando eu achava que aquele expediente era uma rotina normal, arrumar a casa, enfim... Para minha surpresa, ela tinha outra intenção com toda aquela arrumação. “Bota o chinelo, vamos sair!”, decretou ela. E lá fomos nós. Eu perguntando no caminho para onde iríamos, e nada. Já estávamos no ônibus e eu ainda sem resposta. Em momento algum fui reprimido por tanto questionamento. Talvez por estar compenetrada, concentrada em seu projeto, nada respondia.
Na verdade, um silêncio que fazia parte do processo, fui ver depois. Tem de estar pronto para a glória, para a penúria, para a providência, para as provações.
Chegamos ao destino, enfim. Era a Feira de Santa Cruz, muita gente, eu ainda tentando encaixar uma razão para aquilo tudo. De repente, ela arranja um lugar ali no percurso das pessoas, junto de alguma barraca, uma gritaria só. Parecia um lugar reservado, mas, não, ela inventou aquele espaço ali.
Pronto. Agora eu entendi. Dentro de umas das bolsas cheias de bolsas havia várias folhas de jornal, que mamãe esticou ali no chão, ocupando um espaço necessário e suficiente para a empreitada. Todas aquelas bolsas cuidadosamente dobradas, agora eram abertas com o mesmo cuidado. Não lembro quantas, mas eram muitas, emparelhadas, expostas ali. Era a banquinha de bolsas. Bolsas de grife.
Vendeu tudo, porque eram de marcas. Vendeu tudo, porque tudo conspirava para o sucesso da empreitada. Vendeu tudo, porque ela planejou não sonegar a necessidade, o aperto, mas contemplar a escassez das coisas, dos tempos, com afinco e honestidade.
Mamãe tinha essa habilidade, essa arte de encontrar soluções para o que poderia ser uma calamidade, uma tragédia, uma miséria. Eu acho até que essa capacidade que ela tinha de reverter um cenário de penúria em bonança é que me estimulou a considerar apenas as melhores possibilidades na vida.
Depois de 45 anos que ela partiu, carrego até hoje uma saudade imensa, que dói, mas por sorte, maturidade e o espírito calejado já não machuca mais, pois o orgulho que eu sinto dela acabou preenchendo o que antes era uma grande lacuna.