terça-feira, 10 de janeiro de 2023

EUFEMISMO



   Um sujeito passa com o carro na poça d’água bem em frente ao ponto de ônibus. Ele chega a se aproximar mais das pessoas para que o impacto com a água fosse maior. Com o local bem lotado de gente, eu ouvi palavrões de toda ordem lançados ao piloto sacana.
    Mas no meio de toda aquela gente encharcada e pê da vida havia uma senhora que, talvez resignada ou de bem com a vida, sei lá, simplesmente falou para alguém ali ao lado, “é um abençoado mesmo, né!!”.
    Se tem uma coisa entre várias que ainda alimentam o sonho de um mundo melhor é o esforço que algumas pessoas fazem para medir as palavras, ou usar um termo mais ameno para expressar uma revolta, enfim, se controlar mesmo em estágio de cólera, o fogo já quase saindo pelas ventas, mas a pessoa ali, ó, mantendo a linha, vai vendo.
    Na minha época do quartel, num evento de instrução, um sargento nos aconselhou a manter sempre a ternura, mesmo em casos extremos, como medida de bom comportamento, educação, disciplina, ordem e progresso, essas coisas. É claro que ele falou isso com muito cuidado naquele ambiente, pois, esse negócio de ter de endurecer sem perder a ternura já deu muito problema aqui no paisano.
    De qualquer forma, foram as minhas primeiras lições de autocontrole, mas depois lembrei que já tinha visto isso na escola naquelas figuras de linguagem. Então, descobri a importância do eufemismo, não só na minha vida como no mundo todo. O eufemismo é uma instituição formada a partir da ternura, essa parada que já vem embutida em qualquer homo sapiens. Não sei de registro de eufemismo na escrita rupestre, os hieróglifos, mas na era moderna viralizou bastante esse negócio.
    Hoje, é fácil ver o quanto o eufemismo está incorporado à realidade humana. Mesmo que não evite uma grande tragédia, pelo menos funciona para manter a boa aparência. No cenário político a gente vê muito eufemismo. A imprensa mesmo trata algumas figuras assim também. O cara envolvido em tramoia, documento comprovando e tal, mas a matéria diz que ele praticou ato ilícito, subtraindo recursos públicos, porque assim fica melhor.
   Em tempos de guerra também. Os caras quase saindo na porrada, mas rola um tratamento afetuoso. “Vou te quebrar, irmão!”. É o que certamente o abençoado do Putin já deve ter disparado para o Zelensky.
    E falando em abençoado, os evangélicos, então, amam esse eufemismo, claro, como forma de ver melhor o seu semelhante. O cara se converte, mas cheio de pecados no currículo e as irmãs entre os dentes comentando. “Olha lá, irmã, três Maria da Penha nas costas, é um abençoado!”.
    E por aí vai. Agora, tudo bem que tem gente que gosta de falar na cara, na íntegra o recado, papo reto, sem medir as palavras, mas pense no quão conflituoso seria o mundo, mais do que já é, não fosse o eufemismo.
    Se o eufemismo for exclusivo na linguagem do nosso planeta, a gente vai ficar conhecido pelas inscrições nas lápides, nas pichações dos muros, nos stories, nos livros de história, claro, se sobrar alguma coisa quando a Terra partir dessa pra melhor.

                                        Arte: Brasil Escola- UOL

Nenhum comentário:

Postar um comentário